Artigo na Folha: “Terraplanismo penal não é política pública: o Brasil prende, sim (e demais)”
O artigo a seguir, assinado por Patrícia Villela Marino, foi publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo em 18 de maio.
É com indignação que recebo a afirmação do colunista Joel Pinheiro da Fonseca, publicada nesta Folha, de que “não é verdade que o Brasil prende demais. Prendemos muito pouco” (“Atlas da Violência 2025 me trouxe um sentimento perigoso: esperança”, 12/5).
Esse tipo de discurso, que desconsidera os dados da realidade, poderia figurar num almanaque do negacionismo —mas trata-se de terraplanismo penal. Como todo terraplanismo, é perigoso porque desinforma e alimenta a ilusão de que a violência se resolve com mais encarceramento.
Quando o colunista afirma que “a leniência do Brasil com o criminoso violento é notória” e que “se não permaneceu preso depois da primeira passagem, é porque o sistema falhou”, revela uma visão baseada no senso comum punitivista, que ignora o funcionamento real do nosso sistema de justiça, sabidamente mais rigoroso com determinados grupos sociais.
Vamos aos fatos. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. São mais de 832 mil pessoas presas, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Mais de 40% dessas pessoas estão presas provisoriamente, ou seja, sem julgamento definitivo —uma aberração jurídica que contraria os princípios do devido processo legal e revela o caráter punitivista e seletivo do nosso sistema.
E mais: dois terços da população prisional são pessoas negras. Não estamos falando de um sistema eficaz, estamos falando de uma engrenagem racista que alimenta o encarceramento em massa de jovens pobres e periféricos sem reduzir a violência.
O que não se diz, mas precisamos enfatizar, é que o encarceramento em massa constitui hoje uma das maiores ameaças à soberania nacional. Ao prender muito e sem critério, ampliamos as fileiras das facções e organizações criminosas, transformando os presídios em universidades do crime. O Estado, incapaz de oferecer condições dignas de detenção, abre espaço para que essas organizações recrutem, se fortaleçam e expandam seu poder para além dos muros das prisões.
Dizer que “prendemos pouco” no Brasil é não apenas ignorância estatística, mas uma falácia perigosa que encoraja soluções autoritárias e falidas. Em vez de enfrentar as causas estruturais da violência —como a desigualdade, a exclusão social e o fracasso da política de drogas—, repetem-se discursos prontos que apenas legitimam a barbárie como método.
No Instituto Humanitas360, há anos temos mostrado, com projetos concretos, que há caminhos mais justos e eficazes: trabalho, educação e reintegração social. As cooperativas sociais e o negócio social Tereza são exemplos vivos de que a transformação começa quando oferecemos alternativas e não celas.
A saída passa por políticas de reinserção e por inteligência no combate ao crime organizado, não pelo recurso arcaico e ineficiente das prisões.
A verdadeira coragem não está em defender mais cadeados, mas em construir uma sociedade onde justiça não seja sinônimo de vingança —e segurança não dependa de muros e armamentos.
Precisamos de dados, sensibilidade e responsabilidade pública, não de slogans baseados no medo. Negar que o Brasil prende demais é o novo “a Terra é plana”. E, com isso, a gente não pode mais perder tempo.
Patrícia Villela Marino
Advogada, é presidente do Instituto Humanitas360