Anticorrupção e Lava Jato: muito além do Brasil
Eduardo Salcedo-Albarán (Diretor da Fundação Vortex)
No dia 9 de junho de 2019, os meios de comunicação revelaram conversas privadas dos promotores da força tarefa da operação Lava Jato em Curitiba, e desses promotores com o juiz Moro, que expediu algumas das decisões judiciais mais impactantes na recente história política do Brasil.
Além de conversas entre agentes do Ministério Público e o juiz, o que contraria o princípio da imparcialidade com a qual o magistrado deve agir, as revelações parecem evidenciar interesse dos promotores em reduzir o protagonismo político de Lula nas eleições presidenciais de 2018; interesse que, obviamente, excede sua competência investigativa.
Essas revelações têm servido para questionar a legitimidade das investigações e sentenças da Lava Jato; questões que ganham ressonância notável já que o juiz Moro concordou em fazer parte da administração de Bolsonaro.
As sentenças que em primeira instância emitiu o então juiz Moro pavimentaram o impedimento de Lula de participar das eleições presidenciais de 2018; e possivelmente Bolsonaro foi o principal beneficiário eleitoral dessas decisões judiciais. Por causa disso, a decisão de Moro de fazer parte do governo de Bolsonaro parece se encaixar em uma estratégia para neutralizar Lula eleitoralmente.
Embora Moro não atue mais como um juiz, o fato de que faça parte do governo de Bolsonaro serve e sirva com especial perspicácia para interpretar a operação judicial Lava Jato em conjunto, e, possivelmente, as ações anticorrupção, não só no futuro, mas em retrospectiva. As decisões judiciais que afetaram Lula e impediram que ele participasse das eleições presidenciais de 2018 certamente serão interpretadas como a causa de qualquer resultado negativo do governo Bolsonaro.
Para muitos, por exemplo, sem a Lava Jato Lula não estaria na cadeia e Bolsonaro não seria presidente. Sem a Lava Jato, a floresta amazônica estaria hoje mais protegida e o principal líder político do Brasil não seria alguém que se orgulha de uma misoginia exagerada. Para muitos, no contexto desse raciocínio e das recentes revelações, a questão sobre quem era corrupto torna-se um tema secundário.
No entanto, a questão de quem foi corrupto não deveria ser perder seu lugar frente a outras questões que também são importantes.
As investigações e sentenças da Lava Jato feitas no Brasil nos permitiram entender e enfrentar a corrupção massiva em vários países da América Latina, nos quais algumas das pessoas mais poderosas também foram investigadas e condenadas. A lista de funcionários públicos e empresários investigados ou condenados na América Latina supera a extensão deste artigo. Sem embargo, como exemplo, as investigações da Lava Jato no Peru resultaram na investigação, detenção preventiva, fuga ou morte dos últimos quatro presidentes; Alan Garcia, uma das figuras políticas mais importantes do Peru, cometeu suicídio depois de saber da sentença preventiva de prisão contra ele, por acusações de corrupção relacionadas à Lava Jato.
As investigações da Lava Jato, originadas no Brasil e agora estendidas para a América Latina, permitiram entender estruturas de corrupção tão extensas, variadas e complexas, que inclusive tornou necessário desenvolver novos marcos científicos e metodológicos para entendê-los. A Lava Jato não foi outro caso típico de corrupção, mas um fenômeno tão complexo que novos conceitos foram necessários para compreendê-lo.
Como exemplo, após dois anos de pesquisa acadêmica, Humanitas360 e Fundação Vortex tiveram de introduzir o conceito de “macro corrupção” para definir a extensão e complexidade das redes de corrupção da Lava Jato, que excedam conceitos previamente desenvolvidos no Direito e nas Ciências Sociais. Desde então, a partir de meados de 2019, foi necessário formalizar o conceito de “superestrutura de corrupção”, para diferenciar o tamanho e a complexidade das redes que eram conhecidas em 2017.
As investigações judiciais da Lava Jato também têm evidenciado os limites técnicos e institucionais dos sistemas de justiça de cada país, que tiveram de investigar a corrupção transnacional além de suas jurisdições, suas metodologias e suas capacidades.
Isso não significa que vale tudo para avançar nas investigações e condenações da Lava Jato no Brasil ou em qualquer país da América Latina. Em cada país, as ações de procuradores ou juízes que excedam os limites administrativos ou legais de suas competências devem ser investigadas e punidas pelas instâncias correspondentes. Além disso, qualquer interpretação indevida ou forçada das provas judiciais deve ser revista e corrigida por instâncias superiores. Precisamente, levando isso em consideração, o ex-presidente Lula entrou com um processo e certamente apresentará recursos perante o Supremo Tribunal, que está fora da influência de qualquer juiz de primeira instância ou promotor de uma força-tarefa.
No caso específico do ex-presidente Lula, os fatos que serviram como evidência para provar sua condenação não só foram avaliadas pelo juiz Moro, mas também por instâncias adicionais, incluindo o Superior Tribunal de Justiça.
Em geral, os possíveis atos de corrupção de funcionários públicos e empresários poderosos, por um lado, e uma possível má conduta dos promotores e juízes, por outro, são questões que requerem um tratamento especial. Mesmo quando questões sobre promotores e juízes afetam decisões judiciais, instâncias superiores e supranacionais devem intervir, com o poder de corrigir essas decisões.
Em outras palavras, exigir a devida conduta legal e ética dos promotores e juízes não é uma questão secundária, e no entanto, a corrupção de altos funcionários públicos também não é. Ambas as questões são igualmente importantes para garantir o Estado de Direito.
Além disso, deve-se considerar que, quando promotores e juízes enfrentam corrupção envolvendo os mais poderosos de um país, estão sujeitos a ataques e questionamentos fundados e infundados. Na Colômbia, por exemplo, os magistrados da Suprema Corte de Justiça que na década passada condenaram a cooptação maciça entre narco-paramilitares e funcionários públicos, foram sujeitos a perseguição e as ameaças contra eles e suas famílias, inclusive por parte de funcionários públicos que, desde órgãos do Estado, queriam manter a situação de corrupção. Na Guatemala, desde 2015, quando renunciou o ex-presidente Otto Perez Molina por investigações de corrupção, alguns críticos acusaram o chefe da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala, de promover uma agenda de esquerda, porque os principais investigados e envolvidos em redes de corrupção pertenciam a partidos tradicionais de direita; a Comissão também foi acusada de gerar uma crise econômica na Guatemala, como resultado de investigações contra empresários envolvidos em corrupção.
No entanto, na Guatemala como no Brasil, a crise econômica não é culpa de quem investigou e sancionou a corrupção, mas daqueles que adotaram a corrupção como prática comum.
A corrupção de funcionários públicos facilitou o aumento da atividade criminosa na América Latina, tornando-a uma das regiões mais violentas do mundo. Esses mesmos atos também condenaram a região ao atraso econômico, cultural e social, ou mesmo a tragédias humanitárias, como na Venezuela ou na América Central. Portanto, a luta contra a corrupção deve permanecer uma condição indispensável para a consolidação do Estado de Direito no Brasil e na região, e este objectivo não deve mudar ou perder seu lugar para questionamentos específicos a procuradores ou juízes.