Artigo na The Chronicle of Philanthropy – Todos temos parte no que vem pela frente: Mensagens do Brasil
Por Patrícia Villela Marino e Ricardo Villela Marino
A crise da Covid-19 e os protestos por justiça racial estão colocando uma pressão sem precedentes sobre a sociedade para que se lide com iniquidades persistentes, do acesso à saúde à justiça criminal. E não haverá solução simples, dada a natureza profunda dessas disparidades; afinal, uma vacina não resolverá o fato de que os negros são mais vulneráveis a esse tipo de surto, e uma eleição ou uma lei não vão acalmar manifestantes que exigem uma sociedade mais igualitária.
O mundo filantrópico também deve se adaptar a essa realidade e mudar para uma abordagem que vai além de uma única causa e que passe a incorporar um espectro de soluções e atores para lidar com a raiz dos problemas da sociedade. É um desafio intimidador e crítico, pois uma consciência crescente da complexidade de nosso.
Em nosso país, o Brasil, adotamos essa abordagem mais ampla em relação à filantropia de uma forma que responda às realidades de nosso povo e de nossas comunidades.s problemas requer soluções holísticas.
O Brasil carece da filantropia institucional e da infraestrutura para organizações sem fins lucrativos de que países como os Estados Unidos desfrutam, o que significa que há um número limitado de organizações com financiamento suficiente e experiência de longo prazo para enfrentar os problemas de maneira holística. Dados os desafios que enfrentamos no Brasil, a mudança social exige a incorporação de ainda mais parceiros, o trabalho em estreita colaboração com agências governamentais e a adoção de mentalidades e práticas empreendedoras. Chamamos nossa versão de organização de base e engajamento de atores múltiplos para a solução problemas de “filantropia de 360 graus”.
Nossa organização, a Humanitas360, realiza trabalhos nas Américas para reduzir a violência e melhorar a vida das pessoas. Agimos com urgência, reunindo as pessoas com agilidade para encontrar soluções criativas que não exijam a generosidade de grandes fundações ou doadores, já que o Brasil tem tão poucos filantropos. Também nos concentramos no envolvimento do cidadão e em transparência, desenvolvendo soluções colaborativas que impulsionam mudanças sociais. Nós empoderamos as pessoas que estamos tentando ajudar ouvindo suas necessidades enquanto adaptamos programas para refletir a sua realidade e a realidade da comunidade ao redor.
Trabalhando lado a lado
Ao adotar uma abordagem de filantropia de 360 graus em nossa missão, descobrimo-nos capazes de mergulhar no sistema quebrado que estamos tentando consertar e, ao invés de atribuir culpas e apontar o dedo, trabalhamos lado a lado com todos os que têm interesse em resolver o problema. Fazer isso promove a reconciliação entre aqueles que muitas vezes estão em conflito. Com o tempo, isso pode alterar mentalidades e ajudar as pessoas a superarem preconceitos para que possam incorporar empatia e compaixão. Nosso envolvimento e nossos sucessos compartilhados também servem para demonstrar que todos — não apenas os alvos da filantropia — têm algo a ganhar com os esforços para consertar problemas sistêmicos.
Eis um exemplo de como a abordagem de filantropia de 360 graus funciona para nós. No esforço de melhorar o sistema de justiça criminal no Brasil, reunimos juízes, carcereiros, jornalistas, pesquisadores, representantes de outras organizações sociais, e — talvez o mais importante — presidiários, ex-presidiários e seus familiares. Este é um trabalho complicado e requer excelentes habilidades de escuta e a capacidade de ajudar pessoas que não têm muito em comum a trabalharem juntas. Nosso objetivo é mudar a narrativa sobre o encarceramento e o sentenciamento para que mudanças de política ocorram.
Nossa abordagem resultou em soluções concretas para melhorar nosso sistema prisional e a vida das pessoas. Desenvolvemos uma cooperativa social no Maranhão para ensinar as presidiárias a produzir têxteis de alta qualidade para que elas adquiram habilidades para ganhar uma renda quando estiverem em liberdade.
Também oferecemos a mesma oportunidade a mulheres recém-egressas para ajudá-las no mercado de trabalho. Trouxemos designers, negócios, empresários e outros filantropos para garantir que essas mulheres tivessem as habilidades e o mercado para alcançar sucesso. É importante ressaltar que o projeto conta com a parceria do Conselho Nacional de Justiça do Brasil, uma instituição governamental importante cujo envolvimento confere credibilidade e estabilidade ao nosso trabalho.
Esta cooperativa social — e outras semelhantes que desenvolvemos — dá às mulheres presas a chance de adquirir habilidades comerciais, além de aprender um ofício altamente valorizado.
Todos se beneficiam com essa abordagem — as mulheres têm menos probabilidade de voltar à prisão quando têm meios de levar uma vida digna, o que é bom para elas e para a sociedade como um todo. Mais importante do que isso, as mulheres injetam vida nova na economia, já que seus ganhos têm um efeito cascata, beneficiando seus filhos, seus fornecedores e, em alguns casos, seus funcionários. E agora há um ganho adicional: as mulheres estão costurando máscaras e outros itens de equipamento de proteção para ajudar a desacelerar a disseminação da Covid-19.
Colaboração é chave
Embora as restrições estruturais da filantropia no Brasil à primeira vista pareçam uma desvantagem, descobrimos muitos pontos positivos em nossa abordagem de filantropia de 360 graus. Por sermos uma organização pequena, sabemos que podemos alcançar resultados abrangentes para as pessoas e as comunidades somente se buscarmos parceiros — como o Conselho Nacional de Justiça — e se também nos oferecermos como parceiros. Nosso pequeno porte também nos permite mobilizar rapidamente e aproximar as pessoas sem uma burocracia interna no caminho. Não temos uma agenda política, o que ajuda a integrar membros e ex-membros do governo em nossos principais projetos.
Embora nosso trabalho seja focado no Brasil, este modelo de colaboração pode ser uma ferramenta poderosa para a mudança sistêmica em qualquer local — sobretudo onde a filantropia institucional está ausente ou apenas começando. Pequenas organizações podem aprender com esse modelo, pois ele mostra que tamanho e recursos abundantes nem sempre são necessários para envolver todo o espectro de partes interessadas para resolver problemas sociais complexos. Em nossa experiência, o amplo envolvimento das partes interessadas — uma abordagem necessária para lidar com qualquer problema social sistêmico — não está reservado apenas aos grandes atores da filantropia.
Dada a crescente necessidade de ajuda em todo o mundo, esperamos que os líderes possam adotar essa abordagem em regiões com pouca filantropia institucional. A pandemia afeta tantos aspectos da vida dos indivíduos e de sua vizinhança que devemos agir de forma holística se quisermos ter uma recuperação total como sociedade. Ao abordar questões com foco no envolvimento de todos com interesse na solução de um problema, podemos estabelecer parcerias que ajudem a catalisar uma recuperação no curto prazo, permitindo colaborações que sustentem as comunidades no longo prazo.
Patrícia Villela Marino é cofundadora e presidente do Humanitas360. Ela é uma das fundadoras e criou o hub de São Paulo do conselho consultivo da Global Shapers do Fórum Econômico Mundial. Ricardo Villela Marino é parceiro, vice-presidente do Conselho de Direção e presidente do Conselho Estratégico Latino-Americano do Itaú Unibanco.
Acesse aqui ao artigo publicado na revista The Chronicle of Philanthropy: We All Have a Stake in What’s Next: Dispatches From Brazil
https://www.philanthropy.com/article/We-All-Have-a-Stake-in/249284