O artigo a seguir, assinado por Patrícia Villela Marino, foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 18 de outubro.
Vivemos uma inflexão histórica na trajetória democrática mundial. Enquanto os Estados Unidos — outrora bastião inquestionável dos valores democráticos — mergulham em convulsões institucionais, o Brasil desponta como farol da democracia. A revista The Economist e uma geração de cientistas políticos reconhecem em nossa nação um exemplo do combate aos arroubos autoritários, uma conquista orquestrada, em grande medida, pela atuação firme e republicana do Poder Judiciário brasileiro. É precisamente este protagonismo que torna ainda mais dissonante quando magistrados individuais, desalinhados com o momento histórico, escolhem o caminho da opacidade em detrimento da transparência.
A condenação, em maio, da jornalista Rosane de Oliveira e do jornal Zero Hora ao pagamento de R$ 600 mil em danos morais por expor os rendimentos de uma desembargadora gaúcha representa não uma falha sistêmica, mas revela a miopia de indivíduos que não compreenderam a magnitude do papel que o Judiciário brasileiro desempenha hoje.
Cada decisão que privilegia o corporativismo sobre a accountability constitui uma fissura no edifício da credibilidade institucional, oferecendo combustível àqueles que propagam a narrativa (falsa e antidemocrática) da “ditadura do Judiciário”. O que deveria permanecer como mentira desprovida de substância corre o risco de adquirir ares de verossimilhança, não pela força dos argumentos autoritários, mas pela conduta de poucos que se desviaram da trajetória exemplar trilhada pela instituição.
Quando uma jornalista é sancionada por revelar que uma magistrada recebeu R$ 662 mil em um único mês — informação pública, disponível no Portal da Transparência —, debate sobre o exercício profissional é transcendido. O que se questiona são os fundamentos da democracia participativa, em que crítica informada e transparência constituem pilares invioláveis de um Estado que se pretende republicano.
A vida democrática contemporânea é indissociável do jornalismo profissional investigativo. Das revelações do Watergate aos desdobramentos da Vaza Jato, dos Panama Papers ao Orçamento Secreto, a imprensa livre tem funcionado como sistema imunológico das sociedades abertas, protegendo-as das patologias do poder concentrado. Quando magistrados punem aqueles que exercem essa função essencial, não apenas violam preceitos constitucionais — fragilizam os fundamentos de sua própria legitimidade democrática.
Contudo, há exemplos edificantes no Judiciário que merecem ser destacados. A decisão recente da juíza Juliana Petenate Salles, que determinou a proibição de conteúdo com trabalho infantil artístico em redes sociais sem autorização judicial, exemplifica magistrados que compreendem seu papel transformador na sociedade. Ao reconhecer que “manter crianças e adolescentes expostos em redes sociais para fins lucrativos gera riscos sérios e imediatos”, a magistrada materializa o que constitui a essência do Judiciário contemporâneo: sensibilidade social, sintonia com a sociedade e compromisso democrático.
Se o Judiciário brasileiro conquistou, por meio de sua atuação exemplar na preservação democrática, um lugar de destaque no cenário mundial, cabe aos magistrados individuais estar à altura do momento histórico, abraçando a transparência e a responsabilização como instrumentos de fortalecimento, não de ameaça, à legitimidade institucional. Esta escolha determinará se o Brasil continuará sendo farol democrático para um mundo em crise ou se permitirá que condutas individuais desalinhadas diminuam o brilho de sua luz.
Opinião por Patrícia Villela Marino
Advogada, é presidente do Instituto Humanitas360