Uma forma civilizada de tratar a cannabis

Originalmente publicado na revista Economy & Law de junho/2020.

Por Patrícia Villela Marino e Emílio Figueiredo

A decisão de órgãos de saúde pública nos Estados Unidos de manter o comércio de produtos derivados de cannabis em meio à pandemia, em regiões como a de Nova York e na Califórnia, deixa clara uma questão que pacientes e especialistas têm salientado por décadas: a maconha pode salvar vidas. Produtos como o óleo à base do canabidiol são usados para reduzir convulsões em pacientes com desordens genéticas raras, para a redução de efeitos colaterais em terapias agressivas, como a quimioterapia, ou contribuem com a amenização dos efeitos do Alzheimer e da ansiedade, para citar alguns exemplos.

Ofuscado pela pandemia, o início da vigência no Brasil de uma nova regulação que permite a venda de produtos à base de cannabis, desde março, é um primeiro passo, ainda que insuficiente, para atender as demandas da população. Embora farmácias hoje possam comercializar esse tipo de medicamento (aliás, pelo texto da Anvisa, eles não considerados como tal, e sim “produtos”), não foi permitido no Brasil o cultivo ou produção, o que faz com que todo o processo encareça e faça chegar nos pacientes a preços exorbitantes.

Precisamos ir muito além e passar a discutir uma regulação que amplie as formas de produção e acesso de modo seguro e lícito e, principalmente, que não exclua ainda mais os que sempre participaram deste mercado de forma clandestina. Temos muito a aprender com os erros e acertos das experiências internacionais até aqui. No Canadá, em Israel, na Austrália e estados norte-americanos como a Califórnia, Colorado, Oregon e Nevada, para ficar em alguns exemplos, a regulação da produção e comercialização da maconha foi feita de modo excludente. Nesses países, a regulamentação foi feita em benefício de empresários ricos e brancos – algo que se verifica, por exemplo, com a proliferação de fundos privados para financiamento de iniciativas de cannabis – mercado que passou das vendas legais de US$ 6,5 bilhões em 2016 para US$ 10,3 bilhões em 2018, segundo pesquisa do New Frontier Data. Nota-se uma política que exclui comunidades que têm há anos sofrido efeitos de uma política que estava errada.

Isso fica evidente ao analisarmos dados do encarceramento em massa – fenômeno que não fica restrito aos Estados Unidos. Dos crimes que mais encarceram, o principal deles é o tráfico de drogas. Em 2018, de cada 10 pessoas presas por drogas nos Estados Unidos, 4 foi condenada por posse de maconha, segundo o Pew Research Center.

Estamos seguindo o mesmo caminho. No Brasil, mais de 200 mil pessoas estão presas por crimes relacionados a drogas – entre as mulheres, o crime representa mais da metade das condenações, de acordo com a o último levantamento nacional de informações penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional, com dados até dezembro de 2019. Segundo estudo da Agência Pública que analisou 4 mil sentenças de crimes de tráfico na cidade de São Paulo em 2017, negros são condenados em maior proporção do que brancos (70,9%, contra 66,8%) e com menores quantidades da droga. Para serem apreendidos, basta pessoas negras estarem, em média, em posse de 136g de maconha – enquanto brancos só vão presos com cerca de 482g.

Levar em conta esse histórico de opressão de populações marginalizadas e da comunidade negra é um dos pontos que precisamos salientar para discutir seriamente o cenário regulatório do mercado da cannabis no Brasil. Por que não um diálogo sobre a ética e a cannabis? Quais são os princípios e valores adequados nessa nova regulação? Como será feita a reparação histórica dos danos sofridos por pessoas e comunidades com violência? Como será a participação do Estado, além de regular e fiscalizar? Como a cannabis será inserida no SUS?

Uma comissão especial da Câmara dos Deputados tem pesquisado e debatido modelos regulatórios de outros países. Olhar para experiências de países como a Colômbia e o Uruguai é fundamental, mas devemos construir um modelo brasileiro que sirva para geração de empregos e oportunidade para as pessoas mais atingidas pela proibição.E sabe-se, hoje, que o cultivo da cannabis pode ser rastreado – ou seja, há tecnologia o suficiente para refutar o argumento óbvio da ilegalidade.

É hora de resgatarmos as origens das nossas discussões sobre esse assunto e de termos como principais referências os pais e mães que há muitos anos vêm lutando pelo direito ao acesso a esses medicamentos para o bem estar de seus filhos. Sem falar nas vítimas de violência de tantos anos de combate a uma “guerra às drogas” cega e ineficaz.

Há mais de 60 habeas corpus para famílias cultivarem cannabis em casa para fazer seus próprios remédios, acompanhados por médicos e outros profissionais. Também há uma associação na Paraíba – a Abrace – autorizada por medida judicial a cultivar e distribuir medicamentos para seus associados em todo o país. Dezenas de outras associações também lutam por esse direito. Está na hora de instituições que fazem a interlocução entre vários atores sociais, principalmente entre as pessoas atingidas pelos efeitos prejudiciais da proibição, e buscarem um debate para a construção de uma regulação que amplie as formas de acesso e garanta a inclusão de todos. Infelizmente o contexto conservador e preconceituoso de parte de nossos governantes ainda nubla uma grande perspectiva de inovação na saúde no século 21.

 

Patrícia Villela Marino é presidente do Instituto Humanitas360 

Emílio Figueiredo é advogado e diretor na Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas

 

Para acessar o conteúdo original gratuitamente, é preciso baixar o aplicativo The Winners Prime Leaders Magazine (Android ou IOS)