Artigo em O Globo: “Retórica antidrogas é populismo penal”
O artigo a seguir, assinado por Patrícia Villela Marino, foi publicado originalmente no jornal O Globo em 9 de abril.
Enquanto boa parte do Parlamento brasileiro e personalidades públicas se contorcem em retórica inflamada contra a descriminalização das drogas, os números revelam uma verdade incômoda que os populistas penais preferem ignorar: o crime organizado no Brasil lucra dez vezes mais com combustíveis, cigarros, bebidas alcoólicas e ouro do que com substâncias proibidas.
Estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública expõe a fragilidade do discurso punitivista. Organizações criminosas faturaram R$ 146,8 bilhões com produtos lícitos em 2022 e R$ 15 bilhões com cocaína. Esses números não são mera estatística — representam a falência de um modelo que criminaliza usuários enquanto ignora as verdadeiras artérias econômicas do crime organizado.
Os mesmos que se opõem à regulamentação de drogas hoje consideradas ilícitas — mesmo aquelas cuja aplicação vai muito além do uso recreativo, como é o caso da Cannabis medicinal e do cânhamo industrial — em nome da “proteção da sociedade” silenciam diante da infiltração das facções nos mercados formais. O discurso moralista sobre substâncias psicoativas convenientemente esquece que o álcool e o cigarro — drogas legalizadas e culturalmente aceitas — são instrumentos mais lucrativos para as organizações criminosas.
Essa hipocrisia evidente produz um ciclo perverso. O encarceramento em massa de usuários e pequenos traficantes não apenas falhou em reduzir o consumo de drogas, mas transformou nossos presídios em universidades do crime, onde facções recrutam novos membros e ampliam seu poder. Enquanto isso, as grandes operações financeiras que sustentam o crime organizado permanecem praticamente intocadas.
Precisamos urgentemente de uma discussão madura sobre política de drogas, fundamentada em evidências científicas, e não em discursos moralizantes. Do mesmo modo, é imperativo reorientar o combate ao crime organizado para investigações de inteligência financeira que desarticulem seus verdadeiros fluxos de capital.
A guerra às drogas, como demonstram os números, é uma cortina de fumaça que desvia nossa atenção do real problema. Enquanto prendermos jovens negros das periferias das grandes cidades por portar pequenas quantidades de drogas, o crime organizado continuará sua sofisticada penetração na economia formal, corroendo instituições e ampliando seu poder territorial.
O Instituto Humanitas360, organização de que sou cofundadora e que presido há dez anos, é um testemunho de que existe alternativa aos descaminhos do nosso sistema prisional. Com ações e projetos destinados a presos e egressos, voltados ao conceito de empreendedorismo cívico-social e movidos pela certeza de que todos merecem uma segunda chance, hoje acompanhamos a jornada de reinserção social de vários. Algumas mulheres egressas são colaboradoras da marca Tereza, que nasceu num programa do H360 e hoje é um negócio social independente, que as capacita e gera renda — tendo uma delas, Flávia Maria da Silva, como CEO.
A justiça que queremos construir não se faz com hipocrisia, mas com coragem para enfrentar verdades incômodas e disposição para repensar modelos falidos. O caminho para uma sociedade mais segura passa necessariamente pela construção de alternativas à reinserção social, pela política de drogas baseada em saúde pública e por um combate ao crime que atinja suas estruturas econômicas, não apenas seus peões descartáveis.
Patrícia Villela Marino é presidente do Instituto Humanitas360 e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República e do Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça