A Indústria Regenerativa Acorda o Brasil: Tempo de Atuar

A Indústria Regenerativa Acorda o Brasil: Tempo de Atuar

* Discurso proferido pela presidente do Instituto Humanitas360, Patrícia Villela Marino, no evento Regenerative Cannabis Live (Regennabis), realizado na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, no dia 5 de maio. Na ocasião, Patrícia foi a única representante brasileira entre os painelistas, e discutiu como o mercado da cannabis pode impulsionar uma sociedade regenerativa. Leia o texto completo abaixo: 

É maravilhoso poder falar em nome da Delegação Brasileira, representando o Instituto Humanitas 360, e tratar do tema da regeneração social, para todos e para cada um, no contexto de um mercado que emergiu de maneira inédita.

Esse mercado, que foi criminalizado e que marginalizou corpos racializados e culturas estigmatizadas, saiu da ilegalidade pela investigação científica, pela advocacia investigativa e pelo exercício da cidadania. Um mercado que hoje pode promover justiça climática e um futuro menos desigual.

Sabemos que qualquer novo mercado é um mundo de possibilidades em si. Mas ESTE novo mercado em particular tem um DNA de cura e uma herança ancestral que nos remete aos povos originários mas também à história dos grandes descobrimentos e seus desdobramentos: a colonização, o extermínio dos povos originários e as atrocidades da escravidão.

A indústria da cannabis medicinal e industrial é dignificadora, seja por seu caráter humanitário, sem dúvida, seja também pela oportunidade de reparação histórica. Uma reparação com perspectiva econômica capaz de incluir povos marginalizados como agentes dessa nova bioeconomia e, assim, regenerar o próprio capitalismo.

É um privilégio enfatizar nesse debate que ciência e cidadania andam juntas e são pilares fundamentais da expansão de consciência e da promoção da paz necessária ao desenvolvimento humano e econômico.

Essa é a mensagem que eu tenho a honra de trazer de todas as brasileiras e brasileiros dedicados ao movimento democrático de legalização da cannabis medicinal e industrial.

Esse é o recado que quero deixar para as autoridades brasileiras, mulheres e homens da gestão pública do meu país, que, por causa de interesses pessoais, ainda não entenderam que a cannabis é uma agenda pública de saúde, de trabalho, de renda, de desenvolvimento institucional e científico, de restauração de biomas degradados. 

A cannabis é o agronegócio ESG que respeita e promove os objetivos do desenvolvimento sustentável!

Se hoje a indústria da cannabis medicinal e industrial parece tão distante do imaginário brasileiro, apesar da crescente demanda, eu venho aqui para lembrar a todos que nem sempre foi assim. 

Nos anos 70, um médico brasileiro em São Paulo e um químico búlgaro-israelense em Jerusalém foram protagonistas na pesquisa da propriedade anti-convulsiva da planta medicinal Cannabis sativa e, juntos, publicaram mais de 40 artigos sobre ela. 

 

Ponto 1
Nos anos 80, o Brasil também era protagonista em outro front no qual questões de saúde eram ofuscadas pelo preconceito: o da nova epidemia de HIV/Aids. Numa época em que o vírus ainda estava restrito a grupos minoritários e estigmatizados, o Brasil ouviu os ativistas, reconheceu a legitimidade de suas demandas e superou a homofobia para articular uma resposta imediata centrada no cuidado e que envolvia instituições governamentais e organizações não-governamentais atuantes no território, em um modelo até então inédito de governança.

Essa parceria entre governo e sociedade civil foi tão exitosa que o país se tornou pioneiro na criação de um programa nacional de enfrentamento à epidemia. A centralidade do cuidado encorajou o Brasil a enfrentar a poderosa indústria farmacêutica globalizada e quebrar patentes de medicamentos antirretrovirais, que passaram a ser oferecidos gratuitamente para o tratamento de todos os portadores do vírus por meio do SUS, o nosso sistema público de saúde. A garantia do direito à saúde era absolutamente prioritária.

Infelizmente não foi o que ocorreu no campo da cannabis medicinal. O resultado da pesquisa brasileira não deixava dúvidas quanto aos efeitos benéficos da planta em pessoas com epilepsia grave e refratária, e os cientistas indicaram esse potencial em seus artigos. Mas a indústria foi repelida pelas dificuldades inerentes ao uso de uma substância proscrita e criminalizada. A cannabis era até então conhecida apenas como maconha e já havia sido associada por empreendedores morais até mesmo ao diabo. 

Trinta anos se passaram e, sem interesse do legislador, o estudo ficou restrito a um pequeno círculo de pesquisadores. Até que um grupo de mães de crianças que sofriam justamente de epilepsia grave e refratária tomou conhecimento de práticas aqui nos EUA com resultados muito positivos. 

ESTAS MÃES NÃO TINHAM TEMPO A PERDER! E passaram a produzir o CDB para salvar suas crianças. 

Difícil de acreditar, mas no mesmo Brasil que ajudou a revelar ao mundo os efeitos anticonvulsivos do CBD, o uso do canabidiol era crime!!!

Um movimento de amor, de dor e de cidadania organizado por essas mães e com a participação de pessoas de todos os ramos da sociedade forçou o Brasil, e suas autoridades, a dar um primeiro passo, pequeno e tardio, mas necessário. Porque a vida é inegociável!

As mães, protagonistas da maior dor –o sofrimento ou mesmo a perda da vida de um filho- começaram a obter autorização do governo federal para importar legalmente CBD para fins medicinais. Uma história muito bem registrada no documentário “Ilegal”, que está no YouTube.

 

Ponto 2
Corria o ano de 2014, o mesmo em que o Instituto Humanitas360 foi fundado aqui nos EUA pela minha família, apoiado por um grupo de filantropos humanistas, indignados diante dos efeitos da guerra contra as drogas na América Latina, que aniquilou gerações de cidadãos pobres e marginalizados.

Naquele mesmo ano, enquanto algumas poucas mães brasileiras finalmente recebiam autorização para importar legalmente medicamentos à base de CBD, os Estados Unidos já contavam 20 estados com mercados inteiros de cannabis medicinal legalizados, sem falar das 4 unidades federativas em que a planta se tornou legal para seus três usos: medicinal, recreativo e industrial, na produção de alimentos, tecidos e outros materiais, movimentando mais de 4 bilhões de dólares ao ano.

DEFINITIVAMENTE, o Brasil havia perdido protagonismo, tempo e oportunidades! Perdia e hoje segue perdendo vidas.

Oito anos depois, o Brasil ainda caminha a passos lentos na criação de um marco legal regulatório que permita o desenvolvimento dessa cadeia produtiva no país, seja do campo do uso medicinal, industrial ou adulto. 

O Brasil, de vanguarda, acabou ficando muito para trás. 

No campo da cannabis medicinal, o acesso econômico é inviabilizado pela dolarização do produto. O cultivo interno é, neste sentido, fundamental para que possamos ter uma indústria nacional produzindo para brasileiros e brasileiras que vivem com um ou alguns salários mínimos!

No campo industrial, da produção de alimentos, cosméticos, tecidos e até plásticos biodegradáveis a partir do cânhamo, o Brasil está engatinhando enquanto a China, maior produtora de caule de cânhamo do mundo, sedia uma indústria de 1 bilhão e 700 milhões de dólares. 

Pergunto aos empresários, industriais e representantes dos poderes republicanos brasileiros: Por que aceitaram não serem economicamente competitivos? Por que optaram por sermos deficitários numa indústria de tantos ganhos?

Respondo: Porque todos deixamos a ideologia e o preconceito superarem a ciência. Porque negligenciamos a responsabilidade de gerar condições econômicas a uma população cuja maioria vive na escassez sanitária, para falar o mínimo.

Hoje, o Brasil tem a terceira maior população prisional do planeta, atrás apenas de China e dos Estados Unidos. São mais de 750 mil pessoas presas, sendo que 30% dos homens e 65% das mulheres encarceradas respondem por crimes relacionados à Lei de Drogas. Boa parte dessas mulheres também são mães, e encontraram no tráfico um meio de sobrevivência num cenário de pobreza, de desemprego e de crise econômica. 

O Instituto Humanitas360 trabalha com algumas dessas mães em cooperativas sociais que funcionam dentro dos presídios na promoção de competências e geração de oportunidades de renda para um novo futuro. 

E é a partir desse tipo de atuação que a Humanitas passou a enxergar de perto os danos sociais, intencionais ou não-intencionais, provocados pelas décadas de criminalização e estigmatização da cannabis. Uma política que violou direitos fundamentais de várias gerações, e que ainda hoje atinge de forma desproporcional determinadas populações e localidades por meio de ações policiais violentas e do encarceramento em massa. 

Perdemos vidas, perdemos capital humano, perdemos recursos naturais!

Com isso em mente, eu gostaria de levar as pessoas aqui presentes a pensarem numa questão central: O que é ser regenerativo neste contexto?

 

Ponto 3
Um novo mercado, uma nova indústria e uma nova cadeia produtiva, inclusiva de novos atores, antes marginalizados, podem promover regeneração: do capital explorador ao capital cívico a partir da reparação histórica e da reconstrução de vínculos sociais de confiança. 

O momento não poderia ser mais oportuno, com a ascensão dos critérios ESG em diversos setores produtivos. 

Neste marco do movimento por um ecossistema canábico ESG, insisto que os objetivos do desenvolvimento sustentável são um “road map” para a humanização de produção, distribuição, acesso, pesquisa e comércio. Eu coloco o “S”, o social, em duplo maiúsculo. Sim, porque ele é capaz de regenerar a sociedade. 

Estimativas apontam que a legalização no Brasil do cânhamo industrial, por exemplo, geraria, ao final de quatro anos, mais de 1 bilhão de dólares em vendas de seus derivados, enquanto o Estado arrecadaria mais de 68 milhões de dólares, gerando algumas centenas de milhares de postos de trabalho. 

No cenário de legalização e regulação da cannabis de uso medicinal, adulto e industrial, esses números sobem para quase 5,5 bilhões de dólares em vendas e mais de 1 bilhão e meio de impostos. Não podemos nos dar ao luxo de perder tantas oportunidades e recursos.

 

Conclusão
O Brasil ficou para trás, neste campo, mas deve e pode retomar sua posição de vanguarda. Brasileiras e brasileiros já protagonizamos experiências no campo da saúde que se tornaram modelo para o mundo, como no caso da epidemia de HIV/AIDS, e temos potencial para retomarmos essa posição no campo da cannabis medicinal e industrial. 

2022 é um ano de eleições cruciais no Brasil. O contexto de extrema polarização política do país não pode afugentar debates sensíveis e importantes como este. O estado precisa se posicionar pela ciência, pelo cuidado com seus cidadãos e pelo desenvolvimento humano, social e econômico. 

Eu acredito, e assim trabalhamos no Instituto Humanitas360, que capital filantrópico deva ser capital de risco na promoção de mindset e de políticas públicas onde o “status quo” reprime, asfixia e mata. 

Com tantas pesquisas e evidências, temos a oportunidade e a responsabilidade ética e moral de reparar danos promovidos por décadas de uma arquitetura institucional e de um racismo estrutural que excluem e violam direitos. O Brasil já perdeu gente demais e tempo demais. E que sejamos nós, a sociedade civil organizada, aqueles que darão início a esse ciclo virtuoso. O momento para atuar é agora.