“A sociedade civil vem ampliando seu trabalho e presença apesar das perseguições”, diz deputada venezuelana Manuela Bolívar
A Venezuela tem vivido dias conturbados neste início de ano: parlamentares governistas têm impedido os oposicionistas de participarem de votações importantes no congresso; dois deputados estão desaparecidos e agentes do serviço de inteligência do país fizeram buscas ilegais no escritório do presidente autoproclamado Juan Guaidó. Além disso, a crise humanitária no país tem se agravado – reflexo disso é a imigração em massa para países vizinhos como a Colômbia e o Brasil.
No Índice de Engajamento Cidadão lançado pelo Humanitas360 em parceria com o departamento de inteligência da The Economist, em 2018, o país já era identificado como um regime autoritário, com “força excessiva usada contra manifestantes, prisões arbitrárias e um dos piores lugares para ser jornalista”. Para conversar sobre a situação venezuelana nestes últimos meses, o Humanitas360 entrevistou com a deputada oposicionista Manuela Bolívar, que tem atuado de forma incisiva pela defesa dos direitos humanos. Ela denuncia a perseguição a organizações não-governamentais pelo governo – “não há outra maneira de dizer: o regime roubou um galpão com remédios para ajuda humanitária” – e reforça a importância da luta pela retomada da democracia no país: “A cidadania é parte vital de cada uma das decisões que se toma. Juan Guaidó está na posição que está porque nas últimas eleições livres e democráticas, em 2015, 14 milhões de pessoas elegeram esta Assembleia Nacional”. Leia abaixo.
Humanitas360: Em 2017, o Índice de Engajamento Cidadão, elaborado pelo Humanitas360 em parceria com o The Economist Intelligence, classificou a situação venezuelana como a de um regime autoritário devido à repressão dos cidadãos, o difícil acesso aos artigos de necessidade básica, as detenções arbitrárias, etc. Como está a situação na Venezuela agora? Quais são as perspectivas para este ano que começa?
Manuela Bolívar: Hoje a Venezuela enfrenta um regime totalitário, uma ditadura, que atua sob uma lógica de crime organizado. No entanto, enquanto houver democratas, temos que seguir lutando pela liberdade, como o presidente Juan Guaidó e todos os que acompanhamos sua causa – seguimos lutando por eleições livres e pelo retorno da democracia. A Venezuela começa o ano de 2020 com Juan Guaidó se associando com as democracias mais representativas do mundo e com as lideranças mais fortes do mundo, enquanto Nicolás Maduro não pode nem sair de seu país, e se sai é para ver outros ditadores. Essa é a luta, a da liberdade, e contra alguns dos regimes autoritários mais sangrentos que há hoje na região. Além disso, as organizações da sociedade civil vêm ampliando seu trabalho e sua presença apesar da perseguição do regime a elas.
H360: Como a população da Venezuela se posiciona em relação à crise do país? Como a participação cidadã tem influenciado a direção política do país?
MB: A cidadania é parte vital de cada uma das decisões que são tomadas. Juan Guaidó está na posição em que está, basicamente, porque nas últimas eleições livres e democráticas que houve no ano de 2015, 14 milhões de pessoas elegeram essa Assembleia Nacional, que em dois terços está representada por partidos democráticos. Essa voz é que levou esse mandato por todo o mundo, e a que hoje clama por eleições livres. Temos tentado criar um mais espaço mais amplo de agentes sociais para envolvê-los no planejamento de estratégias.
H360: Quais são as condições de vida da população atualmente?
MB: A Emergência Humanitária Complexa [termo técnico definido pela Organização das Nações Unidas (ONU)] segue e se aprofunda. Os dados da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA) não mentem, o relatório de Michelle Bachellet [ex-presidente chilena] não mente, as condições de vida do venezuelano são muito precárias e são de uma desigualdade esmagadora. Enquanto uma pequena cúpula se formou com centenas de milhões de dólares, resultado da corrupção e do roubo dos contribuintes, milhares de pessoas têm que fugir por nossas fronteiras para outros países todos os dias. A Colômbia recebeu mais de um milhão de migrantes, a cifra de migrantes está estimada em mais de cinco milhões, somos a maior crise migratória do mundo, acompanhando Síria. Outro aspecto da Emergência é o impacto diferenciado em populações vulneráveis como as mulheres, crianças, adolescentes e a terceira idade, que veem ainda mais o comprometimento de seus direitos e seu bem-estar em decadência.
H360: Qual é a situação atual de Juan Guaidó? A população o apoia?
MB: Sim, ao sair em qualquer rua ou participar de qualquer reunião em que esteja Juan Guaidó, é possível ver que é o líder político que conta com maior respaldo, apesar de ainda não ter conseguido cumprir seus objetivos. Ele é líder indiscutível do movimento pela democracia. E também devemos falar da Assembleia Nacional e do trabalho de cada um de seus deputados, isso não é somente uma tarefa de nosso presidente encarregado.
H360: Como tem sido o acesso à ajuda humanitária no país? E a relação com outros países latino-americanos, especialmente com Brasil?
MB: As organizações não governamentais que mandam ajuda humanitária e fazem a diferença em nosso país são objeto de perseguição e hostilidade do regime. No dia 22 de janeiro deste ano, a organização “Rescate Venezuela”, que tem sido uma das grandes articuladoras de oferta de ajuda, anunciou que o regime roubou – já que não há outra maneira de dizer isso – um galpão no qual se encontrava uma grande quantidade de remédios que seriam doados. Assim como foi também o caso de “Mavid”, que o regime pegou ilegalmente fórmulas para crianças com mães portadoras do vírus HIV, ou o caso de “Prepara Familia” – faz poucos dias, as forças de segurança do regime ingressaram em seu centro de reunião. Nosso esforço com a ajuda humanitária também é lutar contra um regime que quer monopolizar inclusive a ação de programas de agências internacionais para lucrar, para obter um crédito político e fortalecer os mecanismos de controle social. Com relação ao Brasil, o governo de Jair Bolsonaro realizou a operação “Acolhida” que tem sido um esforço muito interessante, organizado, de tentar ajudar a população migrante que está indo para lá. Cada um de nós agradece aos países que têm acolhido migrantes e refugiados em todo o mundo. Nossa preocupação é buscar todos os mecanismos disponíveis para garantir os direitos de toda a população que teve que fugir forçadamente de seu país.