Mulheres estão mais vulneráveis a condenações por tráfico de drogas porque Justiça incrimina mais os pequenos delitos, diz pesquisadora da USP

Mulheres estão mais vulneráveis a condenações por tráfico de drogas porque Justiça incrimina mais os pequenos delitos, diz pesquisadora da USP

A pandemia do novo coronavírus tem afetado em especial grupos mais vulnerabilizados no Brasil – e com a população carcerária não seria diferente. Temos visto o aumento de casos de rebeliões (em estados como São Paulo e Amazonas) e o recrudescimento de medidas punitivistas, como a proposta de adoção de “contâneires” para isolar doentes, a suspensão de todos os contatos com familiares e a manutenção no cárcere de grupos que poderiam ser liberados para prisão domiciliar. Nesse cenário, perguntamos a Mariana Chies, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), sobre as preocupantes perspectivas da população carcerária frente à pandemia e também sobre a divulgação recente do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019, divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional, em abril. O relatório mostra que o encarceramento feminino voltou a subir no país, e que mais da metade das mulheres que estão presas hoje têm condenações ou acusações relacionadas ao tráfico de drogas. “Quando a gente olha para os dados das mulheres encarceradas por delito de drogas, a gente não pode esquecer que esse envolvimento de mulheres está atrelado a um processo mais amplo de feminização da pobreza”, lembra a pesquisadora. Assista abaixo – ou leia – a entrevista.

– Quais as perspectivas para a população carcerária frente à pandemia da Covid-19? Por que medidas como as sugeridas na Recomendação 62 do CNJ não são adotadas como política de Estado no Brasil?

As perspectivas para a população carcerária e socioeducativa são as piores possíveis frente à pandemia da SARS-CoV-2, a Covid-19. Isso porque, muito embora o Conselho Nacional de Justiça tenha ditado uma recomendação de número 62, no sentido de que os tribunais, os juízes e os juízes singulares deveriam rever, fazer análises detalhadas em processos de pessoas que estavam presas, essa recomendação é vinculativa. Ou não seja, não obriga os juízes e tribunais a seguirem ela. Isso vai dificultar muito a soltura das pessoas, porque no Brasil a gente tem uma política criminal que é prejudicial às pessoas que estão presas, muito porque a gente prende pessoas por crimes sem violência e grave ameaça. Ou seja, a gente tem uma massa de pessoas presas por crimes contra o patrimônio e por crimes relacionados à lei de drogas. Existe uma ideia na nossa sociedade de que a privação de liberdade é a panaceia para resolver todos os problemas relacionados à segurança pública. Só que a prisão, enquanto pena-base das nossas sociedades contemporâneas, não tem dado respostas aos anseios da população, que demanda sempre mais punição. É simples, na verdade. É um cálculo bem simples que a gente tem que fazer. A gente já sabe que a prisão não recupera o indivíduo, esse indivíduo considerado criminoso. A gente tem muitas e muitas pesquisas que tratam da reincidência criminal e vão dizer que prendendo a pessoa ela não vai sair e não cometer novos crimes.

Em segundo lugar, o cárcere não diminui os índices de violência urbana. Não há nenhum tipo de evidência científica que prove que aumentando as taxas de encarceramento a gente vai diminui as taxas de criminalidade urbana. É só olhar para o Brasil. A gente tem 750 mil pessoas presas em números absolutos no Brasil e mais ou menos 58 mil homicídios anualmente no país. Ou seja, a gente tem muita gente presa e a nossa sociedade continua super violenta. Além de tudo, a prisão, o cárcere, é um lugar que vai violar uma série de direitos humanos fundamentais. Diversos estudos que estão buscando compreender a perspectiva do preso vão demonstrar que o cárcere é um espaço de exceção, completamente vazio de direitos. E onde é que eles estão prendendo essas pessoas? Estão prendendo essas pessoas em locais hiperlotados. Não é mais nem superlotação, é hiperlotação. A gente tem, de acordo com os últimos dados do DEPEN que foram divulgados há menos de duas semanas, um déficit de 312 mil vagas. São pessoas que estão convivendo com ratos, com fezes de animais. São pessoas que estão convivendo com insetos. São pessoas, a exemplo da Cadeia Pública de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que têm tuberculose, feridas abertas que não são cuidadas. A gente está falando de locais que não têm ventilação, de locais que têm racionamento de água, de pessoas que não tem direito a banho quente, da ausência completa de materiais de higiene básica e materiais de saúde, de ausência de acompanhamento técnico específico caso essas pessoas fiquem doentes. E isso tudo o que eu falei não é nada mais do que o resultado de uma política criminal perversa, que está em andamento no país há muito tempo. Apesar de alguns ainda não terem se dado conta, é importante dizer que os muros da prisão não são suficientes para barrar a Covid-19. Na Papuda, a gente já viu que tem 100 pessoas presas que testaram positivo para Covid-19. A gente também tem casos no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e também no Ceará. Ou seja, é uma tragédia.

– Dados do Depen divulgados recentemente sobre o ano passado mostram que o encarceramento feminino voltou a subir em 2019, depois de dois anos de queda. O que dá para dizer sobre esse fato? Já é possível esboçar alguma interpretação desses dados?

Os dados divulgados pelo DEPEN estão mostrando uma pequena — pequena mesmo — variação do número de mulheres presas, de 36,4 mil a 37,2 mil. Isso mostra mais ou menos uma variação de 0,8% entre os anos de 2018 e 2019 — crescendo, nesse caso. Talvez a ausência do cumprimento da decisão do HC coletivo, que estava em discussão no STF (de relatoria do ministro Ricardo Lewandoswki), possa estar influenciando esse cenário, mas me parece, como pesquisadora, ainda muito cedo para esboçar qualquer análise mais aprofundada, muito porque os dados foram publicados muito recentemente e a gente ainda não teve tempo e nem material suficiente para se debruçar sobre eles. Se vocês entrarem no site do DEPEN e olharem essas últimas informações vocês vão ver que não existe nem descrição dos dados, simplesmente os dados estão sendo colocados e aí tem que ter uma interpretação e isso precisa ser feito de forma cuidadosa. Só que a gente não pode esquecer, em primeiro lugar, de que na ponta, diante das forças policiais, as mulheres permanecem mais vulneráveis. Isso pelo fato de elas exercerem atividades de varejo no mercado ilícito de entorpecentes, principalmente se a gente for falar da guarda e do transporte dessas drogas. Ou seja, elas vão estar mais frequentemente expostas tanto ao abuso do poder da polícia como às abordagens policiais. E isso faz com que aumente o número de mulheres acusadas do tráfico de drogas e portanto depois condenadas e presas. 

Do outro lado, a gente tem o modo pelo qual o Judiciário responde a essas prisões. Ainda existe uma resistência muito grande do Judiciário de compreender que a discriminação de gênero formato a maneira com que a punição é vivenciada pelas mulheres. Isso significa que apesar de a gente ter regras específicas, como as Regras de Bangkok, que recomenda que o Brasil deva aplicar medidas alternativas ao encarceramento para as mulheres — bem como legislação nacional, como o Marco Legal da Primeira Infância, que está incorporado ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que vai possibilitar a substituição de prisão preventiva por prisão domiciliar —  existe uma clara resistência dos magistrados e magistradas em aplicar essas normativas. Não é à toa, então, que o ministro Ricardo Lewandoski, após provocação realizada por um coletivo de direitos humanos, em razão do descumprimento do HC coletivo por juízes de primeira instância, pediu explicações aos tribunais de justiça sobre a razão pela qual as mulheres permanecem presas mesmo cumprindo requisito de poder cumprir sua prisão na sua residência. Um outro elemento importante, me parece, é o enfoque exclusivo na maternidade das políticas desencarceradoras de mulheres. É preciso que tanto o legislador quanto o operador do direito, que está na ponta aplicando a lei, percebam que não apenas as mulheres mães são afetadas de forma desproporcional pelo encarceramento, mas sim que as relações de gênero vão atravessar toda a prisão feminina, devendo então ser aplicadas alternativas penais também às mulheres que não têm filhos. Para alterar esse cenário, parece que é necessário uma mudança de cultura desses operadores do direito, mas também da cultura policial, que frente a uma política de drogas que é completamente discriminatória e que visa a selecionar mulheres pobres e negras como os principais alvos de um sistema de justiça pena que é extremamente desigual. Ainda falando das mulheres e dos dados DEPEN, mais da metade delas está presa por crimes relacionados a drogas, à Lei de Drogas. Entre os homens esse índice é muito menor. Em mulheres a gente está falando de quase 51% de mulheres presas hoje por crimes relacionados à Lei de Drogas e homens a gente está falando de mais ou menos 20%.

– Ainda falando das mulheres nos dados do Depen, mais de metade delas (50,94%) está presa por crimes relacionadas a drogas. Entre homens, esse índice é de menos de 20%. O que pode explicar tanto aprisionamento de mulheres com crimes relacionados a drogas?

Isso é muito a representação do tráfico como principal crime que impõe um aprisionamento de mulheres, porque está atrelado a uma escolha dos operadores do direito em punir pequenos traficantes e usuários de droga. Quando a gente olha para os dados das mulheres encarceradas por delito de drogas, a gente não pode esquecer que esse envolvimento de mulheres está atrelado a um processo mais amplo de feminização da pobreza. Conforme os próprios dados do INFOPEN, 62% das mulheres são pretas e pardas e 45% não concluíram o ensino fundamental. 45% não concluíram o ensino fundamental. Desse modo, a vulnerabilidade econômica e educacional das mulheres leva a uma precarização do trabalho dessas mulheres. Se a maior dificuldade de inserção, seja no mercado formal ou no mercado informal (ilícito, por exemplo), diante da necessidade de sustentar a casa e os próprios filhos, elas acabam se inserindo no tráfico de drogas. E isso vai decorrer da maior flexibilidade que elas possuem nesse mercado ilícito do tráfico de entorpecentes, porque elas podem auferir renda ou complementar uma renda já obtida por meio de um trabalho legal. E elas podem exercem isso ao mesmo tempo, conseguindo flexibilizar isso com o cuidado da casa e dos filhos. Contudo, acho que é importante dizer que se a gente divisão sexual do trabalho atribui determinadas tarefas e lugares sociais no mercado de trabalho para as mulheres, isso não vai ser diferente nesse mercado ilícito de entorpecentes. Desse modo, em sua grande maioria, as mulheres vão exercer atividades com baixa remuneração e de maior exposição às autoridades do sistema de segurança pública.
Uma questão que eu acho que é preciso levar em conta é que as mulheres que exercem o trabalho no tráfico muitas vezes vão fazer isso como forma de se permitir também a cuidar dos seus filhos, por essa flexibilidade que tem nesse mercado ilícito de entorpecentes. E quando elas se encontram com o Judiciário, quando elas estão na frente de um juiz, a discriminação de gênero vai se manifestar numa espécie de dupla criminalização dessas mulheres, porque se o legislador já atribui penais maiores aos delitos de drogas, e mesmo equiparando esses crimes a crimes hediondos, ele está dificultando o acesso a regimes menos perversos de cumprimento de pena, como por exemplo o regime aberto ou a substituição por penas restritivas de direito. Normalmente essas decisões sempre costumam ser mais rígidas com as mulheres. Isso pode ser resultado de uma moralidade conservadora  que permeia o Poder Judiciário e que criminaliza de alguma forma duplamente essas mulheres, muito em função do crime que elas praticaram e muito em função de elas serem mulheres, porque o esperado é que uma mulher seja uma mulher honesta, seja uma mulher mãe, seja uma mulher que cuide dos seus filhos e da sua família. E mesmo que elas sejam presas com pequenas quantidades de drogas, mesmo que elas sejam mulheres que trabalhassem no varejo, consumidoras ou transportadoras das drogas, a gente tem visto uma desproporcionalidade na aplicação da pena que vai atravessar todo esse processo criminal. E aí, por fim, com os dados compilados do INFOPEN existe um relatório muito interessante do Instituto de Trabalho, Terra e Cidadania que chama Mulheres Sem Prisão que vai falar exatamente isso, de quem são essas mulheres. Eu acho que vale a pena ressaltar de novo: metade delas tem entre 18 e 29 anos, então são mulheres muito jovens; 57% delas são solteiras; 68% delas são pretas e pardas. Então isso mostra essa desigualdade de gênero e social que existe permeando toda a questão do encarceramento feminino.