Leia a nota técnica do H360 sobre a saída temporária de pessoas presas
Está em tramitação no Senado Federal um Projeto de Lei que prevê o fim do benefício das saídas temporárias – também conhecidas como “saidinhas” ou “saidões” – de pessoas encarceradas no Brasil. Apesar da importância deste instrumento legal para a garantia de direitos e para a ressocialização daqueles privados de liberdade, o assunto é com frequência capturado por porta-vozes do punitivismo penal, que associam o benefício a uma suposta conivência do Poder Público e do Judiciário com a criminalidade.
Com o objetivo de esclarecer a sociedade e contribuir para o debate, o diretor executivo do Instituto Humanitas360 e especialista em Direito Penal e Criminologia, Higor Cauê, produziu uma nota técnica sobre a saída temporária. Além de desfazer a confusão entre institutos legais diversos, como o indulto e a permissão de saída, o texto analisa as consequências do Pacote “Anti-Crime” para a política criminal e penitenciária no país. Segundo a nota, a saída temporária é um dos benefícios mais importantes para a reinserção social de pessoas presas, pois estimula nelas o bom comportamento através da interação social, familiar e comunitária.
Leia a nota a seguir.
NOTA TÉCNICA – SAÍDAS TEMPORÁRIAS
SAÍDA TEMPORÁRIA E POPULISMO PENAL
O debate da saída temporária, embora controverso em dados quando se trata do sistema penitenciário, possui muitos questionamentos sobre os reais benefícios da permissão aos apenados, de saírem das prisões por determinados períodos, alegando com isso um comprometimento à segurança pública. Entretanto, os estudos apontam que esse instituto penal é uma eficiente ferramenta na reintegração social e ressocialização, proporcionando benefícios tanto para o apenado, quanto para a sociedade geral.
O benefício tem objetivo de permitir que os presos possam visitar suas famílias e participarem de cursos, se desenvolverem, mesmo diante do crescente discurso de populismo penal. É necessário considerar que, apesar dos riscos, ainda assim a responsabilidade para tratar da situação como um todo – e não apenas de um caso – é da própria sociedade, e nisso considerar a aplicação do benefício com ciência, efetividade e ponderar seus impactos socioeconômicos.
Todas as iniciativas legislativas, que visam o fim das saídas temporárias, mostram que a punitividade (populismo penal) tem sido frequentemente utilizada pelo Legislativo, e com isso André Lozano Andrade (2019) aponta que trata-se de uma encenação política, que possui três momentos de “drama”: (i) desordem social; (ii) fonte da desordem; e (iii) solução salvadora.
No primeiro momento a desordem social é descrita através de sentimentos de compaixão e indignação, formulando uma “denúncia”, utilizando-se da narrativa dramática, para causar medo, e por imagens que podem causar terror ou revolta.
Após, ocorre uma disseminação de imagens dos alvos escolhidos, formando a ideia de fonte da desordem, estigmatizando, combatendo um suposto inimigo da sociedade, desconsiderando se a ameaça é factual, mas um símbolo do “purgar” para demonstrar combate eficiente.
E finaliza com os líderes do populismo penal, produzindo discursos pragmáticos, de cunho ordeiro, reparador, convocando a sociedade para se revoltar e utilizando do messianismo como forma de resolver a falsa justificativa, de que a Nação está em mal iminente.
Com isso, o populismo penal se relaciona com a produção em massa de imagens e notícias sensacionalistas sobre aumento da criminalidade, causando o próprio medo e insegurança, a sensação de impunidade e descontrole social. Estigmatizam o criminoso, sujeito que geralmente é associado ao negro e ao pobre, que tornam-se alvos. Com medidas panfletárias, vendem seus fins eleitoreiros, ignorando dados científicos.
Igualmente sobre a saída temporária há falta de dados e estudos aprofundados sobre a população carcerária no organismo social, seus custos e o impacto das propostas legislativas. Considerando a falta do debate científico, o populismo penal ganha força para alegações de possíveis alterações legislativas de recrudescer o direito penal, como medidas infalíveis à sociedade.
Assim, a presente nota visa contribuir inicialmente com o esclarecimento da mudança de cenário atual acerca da produção de dados no campo penal e penitenciário brasileiro, pela urgência do Poder Público sistematizar dados e responsabilizar o Poder Legislativo quanto às matérias penais, especialmente pelo debate científico da sociedade.
DIFERENÇA ENTRE SAÍDA TEMPORÁRIA, INDULTO E PERMISSÃO DE SAÍDA
Inicialmente é necessário contextualizar a diferença entre Saída Temporária, Indulto e Permissão de Saída, para que seja possível orientar as políticas criminais e penitenciárias.
A Saída Temporária é um instituto do Direito Penal, que tem por finalidade a reintegração social dos apenados que cumprem pena em regime semiaberto, ou seja, são concedidas autorizações para que temporariamente possam deixar o estabelecimento penitenciário.
Tal instituto está previsto no artigo 122 da Lei de Execuções Penais (LEP), Lei n. 7.210/84, e este mesmo artigo coloca requisitos para seu exercício, duração e revogação. Vejamos:
Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
I- visita à família;
II- frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
III- participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
§ 1º A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução.
§ 2º Não terá direito à saída temporária a que se refere o caput deste artigo o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte.
Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos:
I – comportamento adequado;
II – cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente;
III – compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
Art. 124. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano.
§ 1º Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado:
I – fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício;
II – recolhimento à residência visitada, no período noturno;
III – proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres.
§ 2º Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes.
§ 3º Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra.
Art. 125. O benefício será automaticamente revogado quando o condenado praticar fato definido como crime doloso, for punido por falta grave, desatender as condições impostas na autorização ou revelar baixo grau de aproveitamento do curso.
Parágrafo único. A recuperação do direito à saída temporária dependerá da absolvição no processo penal, do cancelamento da punição disciplinar ou da demonstração do merecimento do condenado.
Esse instituto é visto como uma conquista para aqueles apenados que cumprem os requisitos, e que não praticaram falta disciplinar, ou seja, trata-se de um avanço para a ressocialização e reintegração social.
Diferentes da Saída Temporária, outros institutos penais como o Indulto e a Permissão de Saída são completamente diversos entre si, embora sejam confundidos com o vulgar conceito de “saidinhas”.
O instituto do Indulto trata de uma forma de extinção da punibilidade, ou seja, ato de perdão concedido pelo Poder Público, incidindo diretamente na sentença penal condenatória, pois a extingue, cessando seus efeitos, dando por consequência a liberdade ao apenado. É entendido como um “presente” concedido de maneira coletiva e/ou individual, que somente o Presidente da República, como chefe do Poder Executivo, pode decretar, hoje feito anualmente, com condições estabelecidas para concessão do benefício, e comumente editado nas festividades natalinas, daí o vulgo de “indulto de Natal”.
O seu cabimento pode abranger inclusive condenados em benefício de Sursis (suspensão condicional) ou livramento condicional, mas não é autorizados aos apenados por crimes de natureza hedionda ou equiparados (v.g. tortura, tráfico de drogas, terrorismo).
Ainda, cabe ressaltar que a medida do Indulto cuidará inclusive daqueles apenados acometidos por graves situações de saúde, tornando a pena corpórea ínfima diante da própria gravidade e comprometimento da higidez de saúde, popularmente conhecido como “indulto humanitário”.
Já em relação ao instituto penal da Permissão de Saída, previsto no artigo 120 da LEP, é concedido mediante autoridade do diretor do estabelecimento prisional, e trata-se de uma autorização por tempo determinado de saída do estabelecimento prisional concedida ao apenado que esteja em situação autorizada por lei, como no caso de falecimento ou doença grave do cônjuge, convivente, ascendente, descendentes ou irmão, e para casos de atendimentos médicos. Neste, a sua extensão de aplicação pode beneficiar apenados em regime prisional fechado ou semiaberto, e ainda com observação direta pela escolta da polícia penal, ou seja, mediante vigilância direta.
PACOTE ANTI-CRIME
Com a vigência do Pacote “Anti-Crime”, previsto na Lei n. 13.964/2019, a partir de 23/01/2020, estabeleceu-se diversas alterações em várias leis, mas ressaltou tratamento diferente com aqueles que são condenados por crimes de natureza hedionda, especialmente na Lei de Execução Penal, que passou a vedar o benefício de saída temporária, caso o apenado cumpra pena por crime hediondo com resultado morte.
Existem dois entendimentos sobre a mudança legislativa, uma vez que a inovação da lei processual penal trouxe questionamentos sobre a possibilidade das saídas temporárias para aqueles apenados que cometeram crimes hediondos com resultado morte, antes de vigorar o Pacote “Anti-Crime”.
No primeiro entendimento, minoritário, diz que o direito à saída temporária aos apenados por crime hediondo com resultado morte, mesmo anterior às inovações legais, fica impedido de ser concedido, por se tratar de um instituto de natureza processual penal, e nesse sentido o apenado discute a execução da pena e sua relação social, mas não a sentença penal condenatória, que guardaria correspondência ao artigo 2º do Código de Processo Penal: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”, ou seja, a nova lei processual tem aplicação imediata.
Já no segundo entendimento, majoritário, o apenado pelo crime hediondo com resultado morte não perde o benefício da saída temporária, uma vez que a norma já agrava a sanção e tal diminuição de benefício viola o artigo 5º, inciso XL da ConstituIção Federal de 1988, ou seja, a lei não retroage para prejudicar o réu, mas apenas para beneficiá-lo, pelo princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. A LEP é de natureza de direito material, portanto o apenado que cometeu crime hediondo com ou sem resultado de morte, continuará beneficiado das saídas temporárias, quando preenchidos os requisitos outros do instituto penal.
Existem projetos de lei, tais como o PLS n. 266/2018, que tentam alterar o texto do artigo n. 123 da LEP, com previsão para vedação do benefício de saídas temporária aos condenados por crime hediondo doloso praticado contra seus genitores, e que ocorram em datas comemorativas do dia dos pais e das mães. Característica marcante dessa postulação legislativa, seria a “moral” e a repercussão midiática do caso concreto das saídas temporárias concedidas à Sra. Suzane Von Richthofen, que foi condenada por matar seus pais (matricídio e parricídio).
RESSOCIALIZAÇÃO E REINTEGRAÇÃO SOCIAL
Há uma falta de compreensão sobre a ressocialização, especialmente se considerarmos a definição do dicionário de língua portuguesa, veremos que o significado é voltar ao convívio social, e com isso há também ausência legislativa na explicação do termo, cabendo portanto entendimentos e medidas, mas que não podem ser difundidas como opressivas, pois colocaria a função do Direito Penal como num mosteiro, em que são formados monges após a ressocialização.
Trata-se de um fundamento às políticas penais e penitenciárias, mas que pode resultar no erro do entendimento de que o apenado não era socializado no momento do crime ou da prisão, por isso a dialética jurídica aponta para reintegração social, diante da socialização primária, secundária e rudimentos dos costumes da sociedade.
A ressocialização, porém, deve ser encarada não no sentido de reeducação do condenado para que este passe a se comportar de acordo com o que a classe detentora do poder deseja, mas sim como reinserção social, isto é, torna-se também finalidade da pena a criação de mecanismos e condições ideais para que o delinquente retorne ao convívio da sociedade sem traumas ou sequelas que impeçam uma vida normal (apud SHECAIRA, 2002, p. 146).
Assim o benefício da saída temporária torna-se um dos mais importantes diante da reinserção social pretendida, e estimula o bom comportamento do apenado, sua interação social, familiar e comunitária.
Em relação àqueles acometidos de psicopatia, ou chamados psicopatas, que são condições desde o nascimento e sem cura, cientificamente é a forma mais grave de transtorno de personalidade, pois o indivíduo é incapaz de sentir amor, sendo assim não consegue sentir empatia com o próximo e, desprovidos de consciência, não conseguem discernir o certo do errado, e no final acabam por cometer os crimes mais violentos (OTOBONI, 2019). Portanto, a medida de segurança permite tratamento, mas não cabe saída temporária, mesmo que esteja em hospital de custódia, não cabendo “ressocialização”, mas tão somente a reintegração social do paciente por meios específicos da política de saúde mental e antimanicomial.
REVOGAÇÃO DA SAÍDA TEMPORÁRIA
Segundo o artigo 125 da LEP, a saída temporária será revogada pelo juízo da execução criminal, de forma automática, quando o apenado der causa, ou seja, na prática de crime doloso, falta disciplinar, deixar de cumprir as condições do seu “salvo conduto”, que documenta a autorização com a definição de horário de saída e retorno, condições, data de início e fim da saída temporária, ou mesmo no caso de baixo grau de aproveitamento do curso. O prazo é disciplinado e deve ser cumprido pelo apenado, sendo assim aquele beneficiado que não retornar, e não expressar motivo do impedimento, será considerado fugitivo, salvo para casos de força maior.
MONITORAMENTO ELETRÔNICO
As políticas penais têm ampliado o debate para uso de equipamentos eletrônicos, capazes de monitorar o apenado, e nisso deve ser considerado não panaceia da solução aos comportamentos humanos, especialmente da vigilância estatal, além de que apresentam amplo custo ao erário, e mesmo quando utilizado não inibe práticas de desvio de conduta que possam existir.
A lei não condiciona a saída temporária ao monitoramento eletrônico, seja por tornozeleira ou outro meio, mas com a vigência do Pacote “Anti-Crime”, já estão vedadas saídas temporárias àqueles que, no senso vulgar, julgam serem perigosos. Por outro lado, a pena não é infinita, tal qual não há hipótese na vigência do Estado Democrático de Direito, a pena de morte, salvo em condições de guerra, e portanto mais cedo ou mais tarde o apenado voltará à sociedade.
Nesse sentido, é importante esclarecer que o próprio Artigo 124 da LEP determina que a autorização da saída temporária seja concedida nas seguintes condições:
Art. 124. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano.
§ 1º Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado:
I – fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício;
II – recolhimento à residência visitada, no período noturno;
III – proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres.
§ 2º Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes.
§ 3º Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra.
Sendo assim, aquele apenado que não cumpre as condições impostas possuirá consequências já disciplinadas na lei e sua aplicação pelo Poder Judiciário.
Portanto, considerando essa nota ser de esclarecimentos iniciais, entende como urgente as medidas de transparência sobre dados do sistema prisional, bem como vinculação aos estudos aprofundados do Direito Penal pela sociedade e poderes constituídos, e reafirmação da não desconstrução do importante instituto da saída temporária.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, André Lozano. Populismo penal: o uso do medo para recrudescimento penal. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 202 p., 2019.
BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Brasília, 2019. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em: 29.09.2023.
BRASIL. Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 7 dez. 1940. Acesso em: 30.01.2023 BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jul. 1984. Acesso em: 29.09.2023.
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GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 1996.
HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Trad. Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
Autor: Higor Cauê, diretor executivo do Instituto Humanitas360